Os olhos do rei

Aquele sonhos continuava a assombrá-lo noite após noite, pelos últimos 12 dias. Sonhos em que ele encarnava um  jovem, há muitos anos atrás. Não havia como ele se lembrar dessas coisas, se, de fato, elas tivessem realmente acontecido. Mas toda noite essas imagens voltavam à tona e ficavam lá, para serem entendidas, durante toda a noite:

– – –

Ele sentia o chão pressioná-lo sob seus pés. A velocidade crescia, assim como a contagem no pequeno visor de vidro. O tempo parecia passar mais devagar enquanto o elevador o levava cento e vinte e cinco andares acima. Tremendo.

O corredor seguia adiante. Passo a passo, ele deixava o medo um pouco mais escondido em suas entranhas. Queria ao menos ter uma leve visão antes de que o medo corresse pelo corpo e o levasse de volta para o elevador, implorando que ele o levasse para baixo do solo. As paredes do prédio antigo eram revestidas de granito, com quadros de paisagens, fotos em preto e branco de pessoas que hoje já não importam mais. Candelabros de cristais pendem do teto branco margeado por grandes e rebuscadas sancas de gesso. O chão de madeira escura e polida refletia tudo isso e a porta clara mais adiante. Engolindo todos os seus medos, sentindo sua pele fria como o granito das paredes, ele abre a porta para o exterior.

Uma golfada de ar quente infla de vida seus pulmões e abre os seus olhos. E em um segundo a Cidade está em suas mãos. Os pequenos prédios se estendiam até o infinito. Seu corpo era puxado adiante, como se todo o medo desaparecesse de seu corpo imediatamente. Nada escapava ao olhar. Os carros passavam na movimentada avenida centenas de metros abaixo. Uma criança jogava bola com os pais no topo de um dos prédios ao redor.

Assim a Cidade sumia do horizonte. Com seus prédios formando um formigueiro que teimava em não acabar. Nem as tão faladas fábricas, que cercavam a Cidade, apareciam ao olho nu. Dali ele podia ver tudo e todos, ele podia controlar, ele podia estar a par de tudo, tal qual um rei, vestindo, orgulhoso, sua coroa, observa seu reino. Seu ‘reino’ era tudo aquilo que seus olhos podiam ver.

Mas de repente seus olhos se voltaram para um pequeno detalhe. Mísero detalhe, ante a grandiosidade do cenário que se punha ao fundo. Uma pequena luneta de metal, com seu corpo revestido com uma madeira escura. Haviam pequenos desenhos entalhados na madeira, pequenos demais para serem vistos sem que se tomasse um pouco de tempo e dedicação.

Sem pensar nos detalhes, ele agarrou com ambas as mãos o instrumento e colocou em seus olhos. Queria ver mais, controlar mais, ‘reinar’ mais.

Com o tempo, ele foi ajustando o foco do aparelho. Era uma luneta poderosíssima. Era possível se ver os pequenos detalhes de cada pequeno prédio. Os rostos das pessoas andando nas ruas e ler seus lábios com precisão. Era possível ver as folhas dos pequenos arbustos dos canteiros centrais e as feições dos pequenos pombos brancos pousados no calçadão.

Mas apreciar cada detalhe da imensidão não era sua intenção. Logo que ele dominou o funcionamento do foco da luneta, ele subiu a visada para o horizonte. Queria expandir seus ‘territórios’.  Procurou adiante e o que parecia ser possível aconteceu.

Por sobre a fumaça das indústrias e das usinas um borrão verde aparecia. Algo que nem sua poderosa luneta poderia focalizar. Seria o este o fim da Cidade, o fim do mundo? Se assim o fosse, ele era ‘rei’ do mundo inteiro! Aquele borrão verde simbolizava a eternidade de seus domínios.

Satisfeita a sua sede de poder, ele retirou a luneta dos olhos e a deixou no lugar onde estava. Ele a olhava fixamente. Queria ela só para ele. Não admitia que ninguém tivesse o mesmo domínio que ele. ELE era o ‘rei’ de toda a Cidade.Sem pensar duas vezes ele estendeu a mão em direção à luneta. Tudo que havia dentro de sua alma o impelia a roubá-la. Era um desejo que consumia toda a razão.

Como um gatuno, em um movimento rápido e seco ele agarrou novamente a luneta e a colocou no bolso interno de seu casaco e, curvando-se para frente, saiu furtivamente do terraço, desceu o elevador e rapidamente voltou para casa.

Dormiu bem aquela noite. Seus sonhos eram movidos à ambição e poder. O mundo estava sob seus pés até os primeiros raios de Sol da manhã seguinte atingirem seu rosto. Era um novo dia. Um novo dia para apreciar seu ‘reino’ em toda sua majestade. Mesmo sem tomar seu usual café-da-manhã, ele saiu para a rua, indo novamente em direção ao grande edifício. Seu rosto era confiante, enquanto, em sua mão direita, empunhava, como um cetro real, a sua preciosa luneta. Sua ‘coroa’. Chegou ao prédio, exatamente como no dia anterior e pegou o elevador. A viagem não foi tão longa quanto antes. Suas ambições já haviam afogado seus medos.

Rapidamente andou em direção à sacada e, com pressa, sacou a luneta e, em uma fração de segundo, sua alma desmoronou impiedosamente. As lentes estavam leitosas e não era possível enxergar um palmo adiante. A Cidade havia voltado a ser infinita novamente. Sua coroa havia perdido o brilho e virara sucata, assim como sua alma.

Nada mais importava, nada mais valia a pena. Os medos acumulados voltaram à tona e, como uma onda de dilúvio, o tomaram completamente. Suas pernas cederam e, com uma extrema dificuldade, ele andou porta adentro e desceu os elevadores. Saiu do edifício olhando para o chão, pois a mera imagem dos edifícios altíssimos ao redor já traziam a sensação de vertigem. Seu ‘reino’ era apenas o seu próximo passo.

Rapidamente ele voltou para seu apartamento. Indo diretamente para cama e ligando a televisão. Ali ele ficaria, até acordar plenamente – ou até ele se distrair com mais alguma coisa…

– – –

E eis que os primeiros raios de sol atingiam seu rosto e ele despertava desses sonhos loucos. Olhava para o lado e via Margarida dormindo tranquila como se nada a afetasse. Com um salto, Arthur se levantava, colocava seu roupão azul claro e caminhava até a saleta onde haviam os cavaletes e dava mais algumas pinceladas em seu quadro, que teimava em não se acabar. O dia passaria devagar, mas ele esperava ansiosamente a noite, esperava por aquele sonho. Talvez hoje faça sentido. Talvez não.

~ por jlavelino em 26/07/2010.

Uma resposta to “Os olhos do rei”

  1. Não imaginei que esse sonho fosse do Arthur. Surpreendente!

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